Por um pouco de realismo nos estudos sobre processo legislativo

Data: 28/02/2023

Autoria: Roberta Simões Nascimento

Na linha das participações passadas (aqui e aqui) nesta Fábrica de Leis, o argumento da coluna de hoje segue com a pregação de uma nova atitude epistemológica, teórica e normativa a respeito do processo legislativo. Aqui, vai-se chamar esse conjunto de reivindicações de “realismo”. Falta à maior parte da literatura brasileira essa postura. O texto se dedica a explicar cada um desses três sentidos do realismo: 1) epistemológico, 2) teórico e 3) normativo.

Em primeiro lugar, do ponto de vista da epistemologia, o realismo nos estudos sobre processo legislativo se caracteriza por uma perspectiva empírica. Nessa perspectiva, a produção do conhecimento sobre o processo legislativo deve se preocupar em revelar o que e como é o real processo de elaboração das leis; a descrição precisa se voltar para os fenômenos da realidade, o processo como ele é de fato, fundado na experiência.

A ideia aqui é deixar um pouco de lado concepções excessivamente teóricas (descasadas da realidade), as ideias “metafísicas” sobre um processo legislativo ideal que não existe (e talvez nunca vá existir) no mundo dos fatos. Já se têm muitas obras no mercado e na academia com esse viés. Vou insistir em não citar nomes, mas apenas as características dessas produções, para que o leitor reconheça com um simples folhear.

Por exemplo, um livro que pretenda descrever como é o processo legislativo a partir da citação das normas dos regimentos internos das Casas Legislativas, sem uma única ressalva sequer ou a mais mínima contextualização quanto ao seu descumprimento (ou inaplicabilidade na prática) de uma série dessas disposições regimentais.

O rito ordinário by the rule é o menos seguido nas rotinas cotidianas do Congresso Nacional. Por mais que possam parecer regimes excepcionais, o mais frequente é a adoção dos regimes de urgência. Inclusive, o atual presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, por exemplo vem adotando a prática de só levar a plenário (leia-se, incluir na ordem do dia) as matérias cujo prévio requerimento de urgência tenha sido aprovado. Onde isso está escrito? Em lugar nenhum! Como é que se descobre? Pois é, para quem não tem conhecimento da prática, com pesquisas empíricas.

É o caso, por exemplo, dessa investigação que analisou a tramitação dos projetos de leis que acrescentaram novas tipificações ao Código Penal entre 2010 e 2019 com o objetivo de examinar a utilização do rito de urgência, as respectivas justificativas apresentadas e testar a hipótese conectando com um pretenso direito penal de emergência. Entre os achados, está o de que na Câmara dos Deputados todos os PLs analisados correram sob urgência urgentíssima, mas inexiste um padrão temporal quanto à esperada celeridade da tramitação, pois mesmo sob um rito urgente foram observadas demoras superiores a cinco anos.

Agora, é preciso ter cuidado com pesquisas apenas parcialmente empíricas ou que até são empíricas, mas cobrem uma parte muito diminuta da dinâmica legislativa e têm pouco potencial explicativo para revelar novos achados sobre o que efetivamente move os legislativos ou quais assuntos dominam a pauta e a produção legislativa.

Esse é o caso das pesquisas que pretendem analisar só as matérias em tramitação ou só as justificativas iniciais das proposições legislativas apresentadas nas Casas Legislativas, por exemplo. Nos últimos tempos, várias têm sido as produções com esse tipo de preocupação. De modo geral, faz-se um recorte temático — algum assunto como religião, armas, militares, aumento de penas, etc. — e daí acabam-se extraindo supostas conclusões sobre a tendência da legislação porvir ou uma hipotética influência de determinado segmento no processo legislativo. Há aqui uma clara extrapolação.

O esforço até que é válido, mas é preciso recordar que existe um enorme abismo entre as matérias que simplesmente estão em tramitação nas Casas Legislativas e as que realmente foram ou serão aprovadas. Do retrato de umas nada se pode concluir a respeito das outras. Daí, é necessário cautela na hora das inferências, pois, como muito, revela-se o conteúdo de propostas (o que pode ter algum interesse), mas não muito mais do que isso. Sem a aprovação, da mera tramitação não se podem inferir “tendências” ou “influências” de forma categórica.

Isso porque, com frequência, a apresentação de proposições cumpre um papel exclusivamente simbólico. Ao protocolizar uma iniciativa, o parlamentar autor pode ter apenas sinalizado para suas bases eleitorais ou grupo de interessados, mas por vezes não há a menor chance de a matéria se tornar lei.

O mesmo se pode dizer em relação ao estudo só das justificativas iniciais das proposições. Essa é outra tendência de pesquisa legislativa que está na moda, mas padece do mesmo vício de parcialidade. É que a análise dos argumentos apresentados na versão original da proposição diz muito pouco sobre a argumentação dos legisladores. Assim como o exame de uma petição inicial de um processo judicial diz quase nada sobre a sentença. A lógica é a mesma. O processo legislativo é dinâmico, as proposições estão sujeitas a emendamento durante a tramitação, muitas ficam pelo meio do caminho, o desfecho é quase imprevisível.

Quem olha só justificação inicial não tem como revelar um verdadeiro “padrão argumentativo” dos legisladores. No máximo, expõe os móveis iniciais. A argumentação legislativa somente pode ser captada em sua integralidade a partir de estudos que acompanhem toda a tramitação. Além disso, o exame deve ater-se, não somente aos documentos legislativos oficias, mas também avançar sobre as atas taquigráficas das sessões e audiências, integrando os pareceres escritos e o debate parlamentar real. Do contrário, a pesquisa será incompleta.

Por isso, deve-se tomar muito cuidado com os achados desse tipo de pesquisa. Como se disse, até são “meio” empíricas, mas esse é um esforço que parece mais preocupado com o rótulo da pesquisa (o pesquisador poderá afirmar que fez uma pesquisa empírica) e com a pontuação para fins de carreira acadêmica, do que propriamente com o espírito científico voltado para a produção de conhecimento novo e útil sobre a realidade do processo legislativo. Atende apenas em parte a reivindicação de realismo no sentido aqui usado.

Em segundo lugar, do ponto de vista da teoria, o realismo no processo legislativo também precisa partir das considerações empíricas sobre as características da dinâmica real dos processos de elaboração da legislação. A teoria precisa ser o resultado dessas considerações, precisamente para desfazer os “mitos” que se criam ao redor do processo legislativo. A propósito desses mitos, alguns foram brilhantemente citados aqui.

O realismo teórico nos estudos sobre processo legislativo considera a ideia de um devido processo legal (e as expressões congêneres que a literatura vem utilizando, como devido procedimento na elaboração normativa) um mito, uma peça de pensamento metafísico — perdão, leitor, pela repetição dessa crítica já feita nesse espaço —, conscientemente manejada para fins não acadêmicos, e que precisa ser desembaçada. Isso deve ser feito trazendo à tona como os legisladores, a partir das práticas reais que adotam em cada sistema, realmente aprovam as leis.

Por exemplo, isso pode ser feito apontando algumas verdades. Não há como exigir uma estrita pertinência temática das emendas parlamentares. Já se tratou da problemática aqui. Nesse sentido, veja-se que, mesmo após o julgamento da ADI nº 5.127, Cesar Rodrigues van der Laan dá conta de que os legisladores continuaram apresentando emendas sobre matérias vinculadas apenas por afinidade, pertinência indireta ou mera conexão ao tema originário.

Mas quem acompanha a produção sobre processo legislativo sabe que há escritos por aí chegando a defender a inconstitucionalidade de “emendas jabutis” até em PECs. Sim, já se viu até um texto que extrai — ninguém sabe de onde — que os legisladores não podem apresentar emendas no processo de reforma constitucional. Agora, tentar criar uma régua para medir os diferentes graus de pertinência temática adotados pelos parlamentares, ninguém quer. Fazer um exame quantitativo e qualitativo do que foi considerado “contrabando legislativo” pelas próprias Casas Legislativas, ninguém faz.

Existe uma lista infindável de assuntos que carecem de estudos empíricos que os mapeiem, por exemplo: a produção legislativa do plenário versus a produção das comissões; a frequência dos recursos ao plenário (artigo 58, § 2º, inciso I, in fine, da CF); a utilização dos mecanismos de obstrução, da sistemática de votação (simbólica versus nominal); a média dos quóruns das sessões correlacionando com outras variáveis; o perfil dos projetos iniciados pelo presidente da República, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado (a hipótese é que esses últimos têm perfil mais técnico, denso); o perfil da legislação de autoria de parlamentares mulheres (ou outros cortes por partido, região, idade, escolaridade); a taxa de sucesso e a taxa de dominância segmentados por assunto; os perfis dos vetos derrubados versus os que foram mantidos (algo nesse sentido foi feito pela pesquisa citada aqui); a quantidade de proposições que foram impugnadas e tiveram liminares suspendendo a tramitação legislativa; as matérias mais veiculadas via medidas provisórias (ao que parece, predominam os temas tributários, mas é preciso ter uma noção do todo); etc.

Existem mais temas, mas os indicados já são o suficiente para mostrar que existe toda uma agenda de pesquisas sobre o processo legislativo em aberto.

Vista de modo realista, a atividade dos legisladores não é, nem pode ser, equivalente a uma “operação mecânica”, como se o raciocínio legislativo fosse silogístico, fruto de uma combinação necessária e inflexível de etapas ineludíveis para a aprovação das leis. O espaço de atuação dos legisladores é mais amplo do que o sugerido pela literatura que tenta dar conta do processo legislativo. A maior parte dos estudos é muito mais dogmática do que efetivamente “realista”.

Em terceiro lugar, do ponto de vista normativo, finalmente, o realismo é partidário da ideia de que o processo legislativo precisa ser, na medida do possível, racional. A preocupação que impulsiona a elaboração da legislação deve ser racional quanto aos fins e quanto aos meios. Mas o foco do realismo normativo nos estudos sobre processo legislativo não é fornecer mais uma teoria metaética com relação a como as leis e o seu respectivo processo de criação deveriam ser.

No sentido aqui adotado, o realismo normativo se volta para o desenvolvimento de uma forma de examinar a legislação, isto é, o produto da atividade legislativa, de forma convergente com o seu respectivo processo de criação. Precisamente porque, na linha do que já se desenvolveu acima, reivindica-se a consideração dos aspectos empíricos que circundam o processo legislativo, essa mesma realidade deve ser, em alguma medida, espelhada na interpretação a ser adotada quanto ao texto legislativo.

Sempre que uma lei é aprovada, algo é certo: os legisladores quiseram aprovar a lei nos termos em que foi feita. O discurso jurídico pode até acabar lançando mão de outras hipóteses, mas dificilmente essas estarão justificadas em termos de um realismo normativo. Na interpretação do que os legisladores pretenderam a partir dessa ação institucional não se pode negar o seu caráter intencional, agora se esse vai prevalecer ou não é outra questão, que não será aprofundada hoje. Mas a problemática da intenção do legislador já foi algo desenvolvida aqui.

Como se vê, o realismo aqui reivindicado para o processo legislativo não coincide de todo com as teses tradicionais do realismo jurídico em sentido amplo. Rejeita-se, por exemplo, a tese da indeterminação fatal das normas legislativas (ou algumas das versões dessa tese, notadamente a de uma indeterminação radical ou estrutural), embora não se exclua a intencional, isto é, a desejada pelos legisladores, ou a contingente, isto é, excepcional e circunstancial.

O realismo no processo legislativo tampouco abraça uma separação categórica entre o direito e a moral. Atenção, não é que direito e moral sejam equiparados ou não possam ser distinguidos conceitualmente, mas sim que existem pontos fortes de conexão entre ambos quando o assunto é a atividade legislativa. É que a atividade de legislar não pode prescindir da moral, ainda que não seja em um sentido normativo. Os legisladores precisam recorrer a conhecimentos e acabam fazendo escolhas de caráter moral, seja para conhecer as demandas sociais, seja para satisfazê-las.

Enfim, já é honra de caminhar para o encerramento da coluna, mas não sem antes fazer uma última observação.

É curioso notar que o realismo jurídico se dedicou mais à adjudicação (aplicação do direito) do que à legislação (criação do direito). De fato, com exceção ao póstumo The Theory of Rules, de Karl N. Llewellyn — que seria o mais próximo de uma abordagem realista sobre as normas, mas ainda assim o foco é a interpretação no contexto da common law e não tão focado na legislação propriamente —, não existem maiores teorias do realismo jurídico sobre a legislação.

Jeremy Waldron em seu The Dignity of Legislation chega a culpar o realismo jurídico pelo “descrédito” da legislação e do que os parlamentos fazem [1]. O autor talvez incorra em algum exagero, mas chama a atenção para um ponto importante.

Basta recordar que Oliver W. Holmes em The Path of the Law chegou a definir o direito em termos de previsões do que os juízes farão, como vão julgar os casos, colocando ênfase na experiência judicial. A partir dessa ideia, constata-se que nada parecido foi produzido voltado para prever o que os legisladores farão. Atenção, isso não significa a pretensão de que o direito seja definido nos termos do “legislado”, mas sim o anseio de tentar saber de antemão como os legisladores vão legislar. Simplesmente inexiste material equivalente que permita esse tipo de convite a raciocinar a partir da ótica dos legisladores.

Entre todas as funções jurídico-políticas de um Estado de Direito, a aprovação das leis parece ser a mais importante de todas. Se isso é verdade, então, para dar conta das práticas reais de elaboração das leis, parece ser necessário um pouco de realismo nos estudos sobre processo legislativo.

 

[1] Por exemplo, no seguinte trecho, no original: “What could possibly be meant by anyone’s insisting that legislation is not law? At its least controversial, the claim embodies a healthy dose of Legal Realism. A bill does not become law simply by being enacted, or taking its place in Halsbury or in the statute-book. It becomes law only when it starts to play a role in the life of the community, and we cannot tell what role that will be – and so we cannot tell what law it is that has been created – until the thing begins to be administered and interpreted by the courts. Considered as a piece of paper with the stamp of parliamentary approval, a statute is not law, but only a possible source of law”. (WALDRON, Jeremy. The Dignity of Legislation. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 10)

Fonte: Consultor Jurídico

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