Por que estudar as razões que os legisladores dão para as leis que aprovam?
Data: 25/04/2023
Autoria: Roberta Simões Nascimento
Antes de começar o argumento principal de hoje, abre-se um breve espaço para responder os comentários recebidos dos leitores quanto à coluna passada. Assim como das vezes anteriores, o texto rendeu controvérsias.
De um lado, recebeu-se a reação de que seria necessário continuar investindo em pesquisas “dogmáticas”, pois as normas que disciplinam o processo legislativo seriam os marcos para balizar as pesquisas empíricas, o design do processo de coleta dos dados e os critérios de interpretação dos achados para a proposição e reformas factíveis. Claro que sim!
Desde já, então, convém afastar qualquer intenção desta colunista de posicionar-se contrariamente às pesquisas dogmáticas, se é que tal ideia pode ter ficado nas entrelinhas da coluna passada. A pretensão era muito mais a de chamar a atenção para o dado de que, em matéria de processo legislativo, é muito grande a diferença entre o law in the books e o law in action. Por isso, é preciso cuidado.
Manuais e obras que organizam e sistematizam as regras que disciplinam (na verdade, que supostamente deveriam disciplinar) a elaboração das leis são importantes — afinal, tais normas representariam o processo legislativo “ideal”, by the book —, e são importantes especialmente para quem não conhece nada sobre a matéria, alunos de graduação, estudantes para concursos públicos, etc. Assim, não se nega que essas obras são necessárias. Só não se pode parar nelas, é preciso avançar.
O ponto é simplesmente o de que essa literatura não pode ser vendida como se fosse “a realidade” do processo legislativo. É que não cuidam do processo legislativo “na prática” ou de como ele ocorre de verdade. E esse último assunto — isto é, o processo legislativo real, como efetivamente se desenvolve no Congresso Nacional — é o que mais interessa a esta colunista, que sente falta de uma literatura mais realista no sentido de que abarque as práticas de fato, que dê conta do comportamento estratégico dos parlamentares oportunizado por essas normas. Que não confunda processo com resultado.
A reivindicação foi em favor de uma literatura que insira mais adequadamente a perspectiva institucional para compreender os meandros do Congresso Nacional e capaz explicar por que certas dinâmicas são como são. E que também seja hábil em revelar os diversos pontos da agenda de pesquisa lançados na última coluna e que seguem em aberto. Novamente, não se quis desmerecer o trabalho de ninguém, só fazer um alerta e pensar “fora da caixa” mesmo.
Já outro leitor reclamou do uso que fiz da palavra “realismo”, porque o “realismo jurídico” já teria um sentido muito próprio na teoria do direito. E sugeriu a troca por “sentido pragmático-prático-de-realidade” defendendo que deveria haver um processo legislativo mais “real”.
Veja bem, leitor: a coluna passada não quis se referir aos elementos informacionais utilizados como base para a decisão legislativa. O tema das prognoses que subsidiam o processo legislativo é importante, embora não menos problemático. Esse outro assunto já foi tratado nesse outro texto sobre a legislação baseada em evidências. Não era bem esse o ponto da coluna passada, que continha uma provocação de ordem metateórica mesmo (uma crítica à literatura, não propriamente ao processo).
Esse tem sido foco das participações desta colunista (como se pode ver também aqui e aqui): colocar em evidência posturas acadêmicas que não contribuem para o avanço do conhecimento sobre as práticas legislativas reais, seja porque são ingênuas (ignorando a natureza dos parlamentos), seja porque são excessivamente exigentes (desconsiderando os constrangimentos institucionais).
Criticou-se também perspectivas que parecem estar permeadas de conflitos de interesses de seus defensores. Nesse último caso, a suspeita é a de que, ao sustentar certas posições, o autor está buscando muito mais fazer a propaganda de um “produto” (por exemplo, capacitações para a realização de análises de impacto regulatório) ou fomentando a formação de um “senso comum jurídico” que logo será acolhido como tese nos tribunais.
Com isso, finalmente, chega-se ao argumento do texto de hoje, que aponta mais uma dessas abordagens da literatura (aqui tidas como equivocadas) em relação ao processo legislativo, qual seja, a defesa de um controle da motivação das leis. Mas, antes chegar na crítica, convém dar um passo atrás para explicar algo sobre o estudo das razões dos legisladores.
O argumento adiante está relativamente desenvolvido aqui. Parte-se da ideia de que, dentro de um Estado de Direito, o ideal de um “governo por leis” (e não “por homens”) implica a necessidade de que o processo de tomada de decisões vinculantes para a coletividade — o que vale para tanto para leis quanto para outras espécies de atos normativos — conte com a apresentação de razões.
A questão é que, para muitos ainda, o estudo das razões aduzidas pelos legisladores careceria de interesse ou não teria cabida no campo “jurídico”, pois não se encaixaria com as atividades tradicionais da filosofia do Direito ou da dogmática jurídica, por exemplo, que se dedicam a outras questões, como o que é o Direito, como se pode conhecê-lo, quais métodos podem ser utilizados para operá-lo, como o Direito deveria ser, o que pode ser entendido como Direito justo ou à consideração dos textos oficiais (direito posto), etc.
Daí, para contornar essa tradicional objeção teórica, parte da literatura nacional reivindica o status de um “direito fundamental” à justificativa das leis. No entanto, a rigor, isso mais atrapalha do que ajuda. Se há algum dever dos legisladores, esse é só de caráter moral, tal como defende Rainer Forst em seu The Right to Justification: Elements of a Constructivist Theory of Justice. O autor não usa a palavra “direito” em sentido jurídico e deixa isso bem claro logo nas primeiras páginas.
Então, uma tarefa importante consistiria em primeiramente situar a utilidade do enfoque argumentativo e o marco teórico que representa a condição de possibilidade do estudo das razões dos legisladores desde uma perspectiva jurídica, sem que para isso se force a criação um novo direito para atrair o interesse da dogmática. Isso foi mais ou menos desenvolvido aqui.
Mas, mesmo assim, o fato é que a argumentação dos legisladores é relativamente pouco estudada desde uma abordagem jurídica. Os trabalhos da ciência política são mais numerosos. E há uma certa lacuna nas teorias da argumentação jurídica, que, mais centradas na argumentação dos juízes, descuidam das práticas argumentativas dos legisladores.
Ainda são escassos os trabalhos empenhados em construir o catálogo dos argumentos legislativos utilizados com mais frequência para a aprovação das leis, de forma semelhante ao que Giovanni Tarello fez para dar conta dos argumentos mais utilizados para interpretar as leis, ao seu tempo e modo, já que a primeira edição de L’interpretazione della Legge é de 1980 e não existe o rigor metodológico próprio de uma pesquisa empírica.
Tampouco há muitas obras interessadas na argumentação legislativa em uma perspectiva comparada, de forma parecida ao que Neil MacCormick e Robert S. Summers fizeram, em pesquisa que demorou mais de 7 anos, para explorar as implicações práticas das teorias da argumentação em diferentes países. Seria muito interessante, por exemplo, tentar responder à pergunta sobre se o funcionamento do debate parlamentar para a aprovação das leis varia muito de país para país.
Em resumo, existem características peculiares do processo de justificação legislativa que não estão devidamente mapeadas pelas teorias disponíveis. Será que os modelos de ponderação dão conta do caráter complexo da decisão legislativa? Como avaliar se os debates legislativos foram substanciais ou não, suficientes ou não? O que significa um “bom debate”? Quem deve fixar essa noção?
No entanto, contraditoriamente — e aqui vem a crítica central da coluna de hoje — surge na literatura brasileira a defesa da ideia de que “violado o procedimento de apresentação de razões” restaria aberto o caminho para o controle judicial da motivação das leis. Diz-se que, “se não existe justificação ou se a justificação apresentada não é minimamente suficiente”, o caso é de declaração de inconstitucionalidade da lei. Mas como aferir tudo isso se não há parâmetros?
Esse tipo de controle judicial da motivação legislativa (ainda em emergência no Brasil) é uma das espécies do gênero mais amplo que vem sendo chamado pela literatura internacional como “controle semiprocedimental”, que fica no meio do caminho entre o controle formal e o controle material. Volta-se para a racionalidade ou para a qualidade da deliberação legislativa.
Diversas críticas podem ser lançadas a esse tertium genus de controle: quanto à falta de expressa previsão constitucional, à falta de parâmetros estritamente jurídicos que o orientem, à falta de critérios de “desempate” no caso de a aplicação dessa modalidade de controle conduzir a um resultado conflitante com as demais modalidades de controle (formal e material), à criação de insegurança jurídica, etc.
Mas, em se tratando especificamente do controle da justificação das leis, as objeções se tornam ainda mais graves e fortes e a principal crítica se volta para a falta de uma teoria que responda à pergunta: como avaliar o grau de suficiência do discurso justificativo dos parlamentares?
De certa forma, pode-se dizer que avaliar uma argumentação passa por julgar a sua razoabilidade. Mas, mais uma vez, disso vem outra pergunta: como identificar que uma argumentação legislativa é razoável?
Constanza Ihnen Jory chega a sugerir um modelo para avaliar a suficiência da argumentação por consequências no contexto dos debates legislativos, a partir de uma lista de perguntas críticas que oferece. Contudo, tal lista não é exaustiva, tampouco oferece segurança para o caso de resposta a apenas parte das perguntas. Além disso, definitivamente, esse é só um dos modelos de avaliação possíveis.
O Discourse Quality Index (DQI), por seu turno, mediria a qualidade da deliberação, mas desde uma perspectiva habermasiana, com foco em quatro indicadores: 1) racionalidade da justificação; 2) orientação ao bem comum; 3) respeito às demandas e contra-argumentos; e 4) políticas construtivas. Tal índice até pode ser confiável para medir as implicações de uma teoria deliberativa, mas talvez não de uma teoria da legislação. Esse indicador específico ainda precisa ser criado.
Ao que parece, então, não existe uma resposta exata sobre que é suficiente ou razoável em matéria de argumentação legislativa. Depende do contexto concreto, da discussão, do tipo de argumento utilizado, e ainda assim haverá divergências sobre a aceitabilidade dos argumentos parlamentares em cada caso.
Não existindo consenso teórico sobre que tipos de argumentos servem para justificar as leis, o perigo de um controle da motivação legislativa — ao menos no atual estágio de desenvolvimento teórico — reside na abertura que se dá para que a mera discordância para com as razões de motivo apresentadas pelos legisladores sirva como fundamento para pleitear a inconstitucionalidade da legislação.
Além disso, a rigor, não existe um “procedimento de apresentação de razões” na prática dos parlamentos. Na linha do que Daniel Oliver-Lalana desenvolve muito bem, os debates parlamentares não são (na verdade, acrescenta-se aqui, estão bem longe de ser) uma fonte justificadora “autossuficiente”, mas sim uma espécie de “concentrado” ou “destilado” do processo de deliberação. Isso porque, para esse autor, a justificação das leis envolve um processo coletivo intrincado, de larga escala, que começa antes e fora dos órgãos legislativos. Ou seja, os debates parlamentares não abarcam todo o cenário [1].
Daí que, por mais que os parlamentos continuem sendo o locus institucionalizado para a produção das leis, a suposta falta de uma justificação formal por parte dos legisladores ou o caráter pretensamente insuficiente das razões legislativas não podem ser tomados em caráter isolado para o controle judicial. Outras variáveis precisam ser consideradas para que se alcance uma conclusão sobre os vícios na motivação das leis.
Não se pode presumir a captura ou distorção do processo deliberativo a partir da análise das motivações. Nem mesmo Jerry L. Mashaw — conhecido por sua preocupação com a legislação orientada a interesses privados — defende que o controle judicial seja tão amplo. Em seu Greed, Chaos, and Governance, o autor chama a atenção para mais “sinais de alerta” [2].
A crítica que se faz aqui, então — insista-se novamente, dirigida a uma parcela da literatura — está em que o interesse nas razões legislativas está sendo indevidamente atrelado à defesa de um controle judicial da motivação das leis. Na prática, isso cumpre um papel muito parecido ao do devido processo legislativo — já tantas vezes criticado por esta colunista – que serve como um “coringa”: quando não existe um argumento de violação frontal da Constituição, seja formal ou material, o devido processo legislativo entra em cena.
Outro problema dessa construção está precisamente no que se explicou acima: não existe uma teoria sólida sobre quais tipos de argumentos são aptos para justificar a legislação. Alguém retrucará: “são válidos os argumentos voltados para o bem comum!”. Ocorre que isso não resolve a questão, pois não é fácil definir o que conta como um “propósito público”. Basta acompanhar a discussão sobre o piso da enfermagem, em que os dois lados se apresentam como portadores de “razões públicas”, para entender o ponto.
O caminho, então, parece ser outro. É preciso, primeiro, conhecer bem como os legisladores argumentam.
Para isso, é necessário começar a investigar empiricamente os processos reais de justificação e deliberação legislativa utilizados na realidade. Só assim será possível detectar os padrões e construir algum tipo de ferramenta adequada para avaliar a justificação legislativa e as razões oferecidas nos debates parlamentares para a aprovação das leis. Essa etapa prévia é ineludível a um pretenso controle judicial da motivação da legislação.
O equívoco da literatura, portanto, está em saltar tais etapas necessárias, não só à defesa de um controle judicial da motivação — o controle judicial representa quase uma obsessão monotemática da maior parte da literatura sobre processo legislativo —, mas sobretudo à construção de uma teoria da argumentação legislativa completa, sobre bases empíricas mais sólidas e capaz de converter a justificação legislativa em uma prática real.
Daí que a pergunta “por que estudar as razões que os legisladores dão para as leis que aprovam?” precisa ser respondida a partir das ideias aqui lançadas, e não para a simples fundamentação de um controle judicial das razões legislativas.
[1] No original: “Parliamentary debates, be they on the floor or in dedicated committees, do not embrace the whole picture of statutory justification. This justification evolves as an intricate collective process which takes place within and outside lawmaking bodies, surrounding and preceding formal legislative proceedings. However, as the parliament remains the institutionalized centre for lawmaking, legislative debates (should) make up a significant part of that process. In a sense, they present a sort of concentrate or distillate of a much larger deliberation at a social scale.” (OLIVER-LALANA A. Daniel. Rational Lawmaking and Legislative Reasoning in Parliamentary Debates. In: WINTGENS, Luc J.; OLIVER-LALANA, A. Daniel (Eds.). The Rationality and Justification of Legislation. Cham: Springer, 2013, p. 135-184, p. 138).
[2] No original: “I do not advocate overturning legislation on ‘process’ grounds (because relevant political competitors are arguably excluded) when coherent and plausible public purposes are served by legislation. Nor should a court ignore actual political competition, however implausible its occurrence may seem a priori. Ideologies may substitute for interest groups or provide who ‘represent’ them. ‘Public-regardingness’ turns, thus, on a combination of substantive and process concerns. I would have the courts look for a combination of substantive and decision-process ‘danger signals’ that together would suggest that legislation is essentially private-regarding — that it benefits some group in ways that cannot convincingly be explained in terms of a broad range of possible public purposes, or in terms of a well-functioning democratic process.” (MASHAW, Jerry. Greed, chaos and governance: using public choice to improve public law. New Haven: Yale U. Press, 1997, p. 79).
Fonte: Consultor Jurídico