O processo legislativo — ou o Congresso Nacional — e o ciclo de políticas públicas
Data: 19/09/2023
Autoria: Müller Dantas de Medeiros e Daniel Assis Brito
Em uma conceituação ampla, uma política pública é qualquer ação do governo com o objetivo de resolver um problema público. Estudos clássicos da gestão pública definem as políticas públicas como o resultado da atividade de uma autoridade investida de poder público e de legitimidade governamental (Müller e Surel, 2002) ou, ainda, como uma série de ações/decisões tomadas intencionalmente por atores públicos e privados, a fim de resolver de maneira pontual um problema politicamente definido como coletivo (Subirats et al., 2008).
Um conceito fundamental nos estudos de políticas públicas é o do ciclo de políticas públicas. O processo das políticas públicas não é um processo linear, mas sim um ciclo que requer atuação constante do governo, pelo menos até que o problema esteja resolvido. As etapas básicas deste ciclo são:
- Identificação de um problema e sua inclusão na agenda governamental;
- Formulação da política pública, com a escolha do instrumento a ser utilizado;
- Implementação da decisão;
- Avaliação dos impactos da implementação;
- Adaptação da política pública, a partir dos resultados da avaliação.
Apesar de as políticas públicas estarem, normalmente, mais associadas ao Poder Executivo, o Parlamento tem papel fundamental em todas as etapas de seu ciclo. Primeiramente, como Casa democrática, plural e representante da sociedade, o Parlamento é o locus ideal para identificar problemas sociais e incluí-los na agenda pública, para deliberação e solução.
A próxima etapa é a formulação da política. Conforme já explicitado nesta coluna por João Trindade e Pedro Merheb, é importante desfazer o mito de que não caberia ao Congresso a formulação de políticas públicas, tendo em vista a inexistência de vedação constitucional à iniciativa parlamentar de proposições que criem políticas públicas. Não há que se questionar, portanto, o poder de iniciativa conferido aos parlamentares para apresentar proposições que almejem a criação de políticas públicas, desde que elas não invadam a competência privativa do Executivo (para criar ou extinguir órgãos ou ministérios) delineada pela Constituição de 1988. Esse é, inclusive, o entendimento do Supremo Tribunal Federal.
No entanto, há, ainda, um questionamento recorrente: o Congresso Nacional e seus parlamentares se encontram dotados da aptidão, da capacidade, da expertise necessária para a realização desse intento? Entendemos que a única resposta possível a essa indagação é um enfático sim – contrariando a visão aparentemente aceita no Brasil de que essa tarefa somente estaria ao alcance do Poder Executivo.
Ora, é ao Congresso que foi atribuída, de forma típica, a função de legislar. Portanto, é de esperar que caiba a ele um papel de destaque na formulação das leis instituidoras de políticas públicas. Ademais, o Parlamento é o local onde estão representados os diversos grupos e interesses da sociedade. É mais plural, inclusivo, e mais transparente em seus processos de tomada de decisão.
Quanto à competência técnica, os próprios parlamentares possuem grande e diversa experiência nos mais variados temas. Além disso, as casas do Congresso contam com corpos técnicos de excelência para auxiliar nesses processos, e podem, ainda, solicitar a cooperação e informações de outros órgãos, como o Tribunal de Contas da União e órgãos do próprio Poder Executivo. Mas é evidente que existe espaço para melhoria nesses processos.
Os problemas sociais que requerem a atuação do Estado são cada vez mais complexos. Neste contexto, a análise dos problemas e definição dos melhores instrumentos para resolvê-los se torna um grande desafio. A formulação das políticas públicas deve, portanto, contar com processos racionais que utilizem as melhores técnicas disponíveis, baseados em evidências e com uma criteriosa análise do impacto legislativo das proposições.
Essa etapa do ciclo deve contar com mecanismos de aprimoramento das decisões legislativas e do ordenamento jurídico, fornecendo um arcabouço informacional mais preciso e aprofundado a subsidiar o processo decisório do legislador — e não como um substituto dele (Medeiros, 2022). Infelizmente, a instituição desses processos mais racionais ainda caminha a passos lentos, como bem defende Victor Marcel Pinheiro em dois textos aqui neste espaço (Pinheiro, 2022 e 2023).
A etapa seguinte à da formulação é a da implementação da política pública, competência tipicamente exercida pelo Poder Executivo, mas que deve ser acompanhada e fiscalizada pelo Legislativo. É justamente esse múnus constitucional que justifica a atuação do Congresso na quarta etapa do ciclo, a avaliação das políticas públicas.
O Congresso possui uma série de instrumentos para acompanhar e avaliar a implementação das políticas governamentais: audiências públicas, convocações de autoridades, requerimentos de informação, e até mesmo a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito. Essa avaliação deve ser realizada de forma sistêmica: durante a formulação (ex ante); durante a execução e após a implementação da política pública (ex post).
Em um trabalho seminal, McCubbins e Schwartz (1984) definiram duas formas de controle: a patrulha e os alarmes de incêndio. A patrulha é o controle centralizado, ativo e direto. O Congresso, por iniciativa própria, examina atividades do Executivo para detectar desvios. Alarmes de incêndio, por sua vez, são menos centralizados, menos ativos e marcados por menos atividade direta. Ao invés de atuar diretamente, o Congresso cria sistema de regras, procedimentos e práticas que viabilizam o escrutínio da atuação governamental por parte dos cidadãos e grupos de interesse.
Os parlamentares podem, então, escolher quando usar cada um dos tipos de controle. A Resolução nº 44, de 2013, inseriu o artigo 96-B no Regimento Interno do Senado Federal (RISF), para institucionalizar um controle do tipo patrulha. O artigo prevê que cada comissão permanente do Senado deverá selecionar anualmente uma política pública desenvolvida pelo Poder Executivo na área de sua competência para ser avaliada. É uma atribuição no âmbito de sua competência fiscalizatória, para a qual se demanda um relatório conclusivo, a ser apresentado ao final da sessão legislativa.
Essa é uma importante iniciativa do Senado para fortalecer o exercício de seus deveres de controle. O Poder Legislativo é um local privilegiado para desenvolver essa atividade, pois possui competência constitucional para fiscalizar os atos do Poder Executivo e prática constante na avaliação de proposições legislativas. Além disso, o Congresso possui pessoal habilitado para realizar essa tarefa (Meneguin; Freitas, 2013).
Revelam-se, assim, infundados os questionamentos sobre a competência (jurídica e técnica) do Legislativo federal para realizar a avaliação das políticas públicas. O Congresso é bastante atuante nessa função, e vem buscando, sistematicamente, aprimorá-la. Um exemplo é a celebração do Acordo de Cooperação Técnica nº 151/2023, entre o Senado e o Tribunal de Contas da União, que se destina ao “desenvolvimento de iniciativas voltadas para o aperfeiçoamento das atividades relacionadas à transparência, ao controle e à sustentabilidade das contas públicas; à fiscalização e ao aprimoramento da gestão pública; à avaliação de políticas, planos e programas governamentais; e ao intercâmbio de informações e à cooperação técnico-científica para a capacitação de recursos de interesse comum” (conforme publicado no Diário Oficial da União, edição nº 116, em 21/6/2023).
A análise de uma política pública deve levar em conta os impactos e resultados da intervenção estatal para servir de subsídio às decisões sobre continuidade, ajustes ou, até mesmo, descontinuidades das intervenções. Idealmente, deve ser realizada de acordo com regras e padrões de um estudo profissional, com critérios, métodos e dados transparentes para estabelecer uma relação de causalidade entre a ação estatal e os resultados desejados. O processo deve ser estruturado para maximizar o uso de conhecimento nas tomadas de decisão. Deve estabelecer qual a eficácia e eficiência de uma política pública para solucionar o problema em questão e mostrar o que funciona e o que não funciona (Hassel; Wegrich, 2022).
Apesar da previsão regimental para a realização das avaliações no Senado, bem como da assinatura do ACT junto ao TCU, ainda não foi editado um regramento sobre as metodologias e os procedimentos a serem seguidos. Como na etapa da formulação, a melhor estruturação de processos racionais e o estabelecimento de metodologias seria salutar para a realização das avaliações. Voltamos a ressaltar que se trata apenas de garantir um processo mais estruturado e racional, a fim de fornecer melhores subsídios informacionais aos parlamentares para as suas tomadas de decisão. Em nenhum momento essa busca por um maior rigor metodológico tem como objetivo substituir o poder decisório legítimo dos parlamentares.
Em resumo, o Congresso possui plena competência e um poder-dever de atuar em todas as etapas do ciclo de políticas públicas. Por ser órgão plural, representativo e transparente, é o local de excelência para identificar problemas sociais e incluí-los na agenda governamental. Não existe qualquer restrição para a formulação de políticas públicas pelo Congresso, desde que não crie ou extinga órgãos do Executivo. Apesar de não ser o responsável direto pela implementação, o Congresso tem o dever de acompanhar a execução das políticas públicas e avaliá-las, uma de suas funções essenciais.
Em todas essas etapas, a institucionalização de processos mais racionais, com metodologias estruturadas e baseados nas melhores evidências é essencial para suprir os Parlamentares com os melhores subsídios informacionais para seus processos decisórios e para a formulação de melhores políticas públicas destinadas à solução dos problemas sociais.
REFERÊNCIAS
CAVALCANTE FILHO, João Trindade. “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal.” Textos para discussão, vol. 1, nº 122, 2013, p. 33. Senado Federal, http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/243237. Acessado em 6 de setembro de 2023.
GERTLER, Paul J., et al. Avaliação de Impacto Na Prática, Segunda Edição. World Bank Publications, 2018. Acessado em 7 de setembro de 2023.
HASSEL, Anke; WEGRICH, Kai. Como Fazer Políticas Públicas. Oxford University Press USA – OSO, 2022. Acessado em 6 de setembro de 2023.
McCUBBINS, Mathew D.; SCHWARTZ, Thomas. “Supervisão Congressual Ignorada: Patrulhas Policiais versus Sistemas de Alarme.” American Journal of Political Science, vol. 28, nº 1, 1984, pp. 165-179. JSTOR, https://www.jstor.org/stable/2110792. Acessado em 6 de setembro de 2023.
MEDEIROS, Müller Eduardo Dantas de. Congresso Nacional, políticas públicas e análise de impacto legislativo: por decisões legislativas mais legítimas. Artigo científico apresentado ao Instituto Legislativo Brasileiro – ILB como pré-requisito para a obtenção de certificado de conclusão de Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Poder Legislativo e Direito Parlamentar. Brasília, 2022
MENEGUIN, Fernando Boarato; FREITAS, Igor Vilas Boas de. “Aplicações em avaliação de políticas públicas: metodologia e estudos de caso.” Textos para discussão, vol. 1, nº 123, 2013, pp. 1-22. Senado Federal, https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/243255. Acessado em 6 de setembro de 2023.
MULLER, Pierre; SUREL, Yves. A Análise das Políticas Públicas. Tradução de Agemir Bavaresco e Alceu Ferraro. Pelotas: Educar, 2002.
“Declaração de Missão da Secretaria-Geral.” Comissão Europeia, https://commission.europa.eu/about-european-commission/departments-and-executive-agencies/secretariat-general/mission-statement-secretariat-general_en. Acessado em 6 de setembro de 2023.
SUBIRATS et al. Análisis y gestión de políticas públicas. Barcelona: Ariel, Pelotas: Educat, 2009, cap. 10 (p. 207-233).
Fonte: Conjur