O complexo — e frequentemente árido — tema da numeração das leis
Data: 28/03/2023
Autoria: João Trindade Cavalcante Filho
Dizem alguns antropólogos que a complexidade do raciocínio de uma sociedade é medida pela quantidade de números que se consegue nominar. Os romanos, por exemplo, não tinham notação para “zero”, porque não havia a ideia de que “nada” pudesse ser um número, ou uma quantidade. Se isso é verdade, a sociedade brasileira é mesmo complexa.
A questão da numeração das leis e da relação das leis com os números é um tema complexo — e frequentemente árido — da Legística Formal. “Mas então quer dizer que vamos ter uma coluna dedicada apenas ao empolgante assunto da numeração das leis?”, dirá o leitor, ao que se responderá que sim, esse é o tema da Fábrica de Leis desta semana.
Primeiro, é preciso fazer uma distinção: numeração das leis ou numeração nas leis? Sim, porque uma coisa é a sequência numérica atribuída aos atos normativos, outra, a questão da designação das unidades básicas da lei e suas divisões internas (no caso brasileiro, o artigo é a unidade básica das leis, e pode se subdividir em parágrafos, incisos, alíneas e itens).
Comecemos pela numeração dentro do ato legislativo. Os artigos, unidades fundamentais de qualquer lei — dado que existe lei sem capítulo, sem seção, sem inciso e sem parágrafo, mas não sem artigo —, são numerados como ordinais do artigo 1º ao artigo 9º, e cardinais do artigo 10 em diante. A razão de ser dessa distinção é obscura, mas um tanto quanto tradicional. Em Portugal, por exemplo, numeram-se os artigos como ordinais até o fim: é famoso o artigo ducentésimo octogésimo segundo da Constituição da República Portuguesa (na prática, costuma-se pronunciar como se fora cardinal: “artigo 282”). Voltando ao Brasil, as primeiras leis do Império — retornaremos a elas dentro em breve — já eram estruturadas em artigos com numerais ordinais, embora entre as primeiríssimas nem todas tivessem a designação “artigo” antes do numeral [1].
Na atualidade, a numeração dos parágrafos (§), que servem para explicar ou complementar o caput, segue a mesma lógica dos artigos — inclusive com a escrita por extenso (“parágrafo único”) quando for um só. Os incisos, que trazem a enumeração de primeiro nível, vinculada ao caput ou ao parágrafo, são um caso à parte: no Brasil (o que não ocorre em nenhum outro país lusófona, quiçá em nenhuma outra nação da Terra), escolheu-se a contraintuitiva regra de numerá-los em algarismos… romanos. Talvez para testar o grau de domínio do brasileiro em relação a conteúdos do ensino fundamental. Até o “XXI” (21) a coisa vai bem, mas degringola em casos como XLVIII (48), ou mesmo LXXXVIII (88)… ninguém é absolutamente seguro ao escrever 488 em romanos (CDLXXXVIII). Com a mania que alguns elaboradores de normas têm de fazer enormes listas de definições, como se a lei fosse um glossário ou uma grande Barsa (Wikipedia, para os mais jovens), os incisos podem ser um problema.
As alíneas (desdobramentos de enumeração dentro dos incisos), por sua vez, são organizadas como letras minúsculas do alfabeto. Após 2009, voltaram à lista o k, o w e o y (vide o art. 1º, I, k, da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, incluído pela Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010). Às vezes, chega-se ao z e ainda é preciso continuar enumerando… A solução? “Dobrar” as alíneas: aa, ab, ac, etc. É o que ocorre no artigo 54 da Medida Provisória nº 1.154, de 1º de janeiro de 2023. Finalmente, os itens (desdobramento de enumeração dentro das alíneas) são os que seguem a numeração mais “tradicional”: algarismos arábicos (1., 2., 3., etc.).
Por outro lado, a numeração das próprias leis traz algumas curiosidades. As Emendas Constitucionais têm numeração sequencial, com série histórica iniciada com a atual Constituição, em 5 de outubro de 1988. As Emendas de Revisão, porém, têm numeração própria e exaurida (da 1 até a 6), já que a Revisão Constitucional já foi exercida e não pode ser ressuscitada. Medidas Provisórias têm duas “gerações” e, por conseguinte, duas séries: a primeira, da época das reedições, vai da 1 até a 2.230, de 6 de setembro de 2001; a segunda, (re)iniciada com a promulgação da Emenda Constitucional nº 32, em 11 de setembro de 2001.
As leis ordinárias… ah, essas são de uma beleza sem-par. As primeiras leis do Império não eram sequer numeradas: eram referidas apenas pela data. A numeração sequencial começa após 1832, mas cessa com a Proclamação da República. De 1889 a 1891, os Decretos do Governo Provisório dão as cartas (e são numerados) e a partir de 1891 reinicia-se a série de numeração das leis ordinárias. De 1930 a 1934, nova leva de “Decretos”, e a numeração é reiniciada após a Constituição de 1934, até o Golpe do Estado Novo, em 1937 — Congresso fechado, decretos-lei, vocês conhecem esse filme. Em 1946, com a promulgação da Constituição, novo recomeço, com a promulgação, em 4 de outubro de 1946, da Lei nº 1. Moral da História: o Brasil tem (pelo menos), três “Lei nº 1”: de 1833, de 1891 e de 1946. É por essas – e outras – que a referência oficial às leis, no Brasil, deve conter três elementos: o tipo de norma (“Lei”, ou “Lei Complementar”, ou “Medida Provisória”, etc.), o número e a data (para evitar ambiguidade da referência). As leis complementares têm uma sequência normal, sem interrupções desde 1962.
Numerar, contar, calcular… tudo isso é questão de sobrevivência, num país que adora legislar. Leis sem número num país que produz um sem-número de leis seriam um suicídio.
[1] A Lei de 20 de outubro de 1823 já utilizava a notação “Art. 1º”. Já a interessante Lei de 14 de outubro de 1822, cuja ementa afirma que ela “Combina o respeito devido á casa do Cidadão com a administração da Justiça”, dispõe “1º Depois do Sol posto, e antes de nascer, nenhuma Autoridade, ou Empregado Publico, poderá entrar em alguma casa sem consentimento de quem nella morar. Exceptuam-se desta disposição: Primeiro, o caso de incendio, ou ruina actual da casa, ou das visinhas; Segundo, o caso de ser de dentro pedido soccorro, ou de se estar alli commettendo algum crime de violencia contra pessoa: Terceiro, as estalagens, tavernas, e lojas de bebidas, em quanto estiverem abertas: Quarto, as casas publicas de jogos prohibidos, constando previamente esta qualidade pelo dito de duas testemunhas ao menos”. Assim mesmo, sem “art.”, e usando o ordinal até depois do 10. A partir de 1826, com a instalação da Assembleia Geral e do Senado, a forma “art. 1º” se consolida, mas ainda com a numeração ordinal em todos os artigos. Na Lei de 18 de setembro de 1828 (cria o Supremo Tribunal de Justiça), pela vez primeira, já se passa a adotar a regra que numera como cardinais os numerais dos artigos a partir do 10. Há casos, porém, como a Lei de 12 de outubro de 1832, com “artigo único”, sem cláusula de vigência ou de revogação, algo que ocorre após 1988 com algumas Emendas Constitucionais.
Fonte: Consultor Jurídico