Tecnologia para efetividade das leis: caso do "Maria da Penha Virtual"
Data: 25/10/2023
Autoria: Fabiana de Menezes Soares
Dentre os inúmeros desafios que cercam as princípios estruturantes de boa legislação e de boa regulação no Brasil e seus respectivos e singulares universos, um se destaca dentre todos: a imensa dificuldade em convencer os legisladores sobre a importância de levar a sério o longo ciclo de implementação das leis.
Os regimentos parlamentares normatizam as normas sobre a produção de outras normas como leis ordinárias e complementares, resoluções, decretos legislativos, emendas à constituição (ou leis orgânicas para municípios), medidas provisórias (Congresso) e mais alguns outros tipos normativos. Assim, os regimentos expressam a autonomia na conformação dos trabalhos parlamentares, mas poderiam ser veículos de políticas legislativas que assegurassem maior possibilidade de efetiva atuação na vida dos afetados e não somente uma existência encarcerada nos livros.
Enquanto as boas práticas para uma legislação mais funcional não deixam de ser exceção típica de parlamentos sintonizados com o nosso tempo como por exemplo, Panorama Legislativo Municipal, Norma.Leg/Senado Federal; Parla/Câmara dos Deputados; Portal de Políticas Públicas/Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais; os trabalhos parlamentares seguem na lógica de mais leis, menos dados e evidências.
Em 2023, pesquisas de opinião detectaram aumento no sentimento de desconfiança no Legislativo por parte do público afetado. Dentre esse público, ou seja, a sociedade, o sistema de administração da justiça, o executivo e claro, há ainda as próximas gerações que sequer escolheram os atuais representantes reúnem o conjunto que sofrerá o impacto de escolhas mal justificadas ou sem condições de serem aplicadas.
Mais do que a atitude de descrédito de parlamentares, o mais nocivo à República é a perda da percepção da boa fé nas atuações dos parlamentos em todo o país ou de que realizar os objetivos que cada lei traz possa ser desconsiderado porque a sociedade não se sente “vinculada” a um dado texto.
Levar a sério a efetividade, as condições de aplicação das leis, já durante todo processo legislativo é essencial para que instrumentos de monitoramento dos efeitos das legislações possam ter futuro no nosso país, e mais, reconhecer que legislações funcionais são essenciais não só para temas de exclusivo tratamento legal, mas para que o trabalho regulatório possa seguir dentro da legalidade exigida para todas as formas de gestão dos problemas públicos.
Recentemente, o governo federal reeditou o Pro-Reg, Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação, primeiramente concebido no primeiro governo Lula, por meio do Decreto nº 11.738, de 18 de outubro de 2023, trata-se de uma iniciativa dos ministérios da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos, Indústria, Comércio e Desenvolvimento, que define boas práticas de governança regulatória aplicáveis a todos os entes com competência normativa na administração federal, direta e indireta, espalhadas por todos os cantos e contextos da Federação.
A par do importante desenho de projeto para o exercício da atividade de normatizar por parte do Executivo e da necessidade de processos que permitam que as normas atinjam os seus objetivos, as políticas para boa regulação, visam mais efetividade e possibilidades de aprimoramento dos seus objetivos e fins que considerem a dinâmica social, a inovação institucional, o uso de tecnologia, o monitoramento e avaliação dos efeitos consumados.
Faria bem à confiança da sociedade no Parlamento a criação de um Pro-Leg, ou lei nacional que atualizasse a Lei Complementar nº 95 de 1998 com normas sobre planejamento legislativo, avaliação de impacto ( inclusive normativo, considerando o sistema de fontes do direito vigente), inovação nos trabalhos parlamentares, monitoramento do cumprimento das leis com o uso de dados e evidências identificados na avaliação de políticas públicas. É sempre bom lembrar que cabe ao Legislativo, por força constitucional, a fiscalização dos programas do Executivo e criar normas que criem direitos e obrigações que funcionem.
Uma inovação tecnológica que auxiliou a Justiça do Rio de Janeiro atuou sobre nada mais nada menos a efetividade de uma lei penal, de legalidade forte. A boa prática ilustra e revela possibilidades e tendências para uma legislação funcional: a Lei Maria da Penha Virtual.
Durante a pandemia, muitas universidades transformaram problemas em oportunidades e soluções. Foi o caso do grupo de estudantes da Faculdade de Nacional de Direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), orientados pela professora Kone Cesário, que dentro das atividades do grupo de pesquisa — Ceditec (Centro de Estudos de Direito e Tecnologia da UFRJ) —, ainda em março de 2020, desenvolveram um web app, ou site responsivo que se comporta como aplicativo ao permitir a geração automatizada de uma medida protetiva de urgência sem que a vítima tenha um aplicativo, visível, instalado no seu celular.
O serviço digital de prestação jurisdicional contou com o apoio de diversas magistrados e magistradas, sobretudo a desembargadora Adriana Ramos de Mello, e ofertou uma pedagogia legislativa ao instruir às usuárias sobre a ocorrência da violência e qual o caminho seguir para a garantia de proteção.
Em tese de doutorado sobre argumentação legislativa focada em estudo de caso da legislação sobre violência contra a mulher defendida por uma das juristas de nossa coluna, Roberta Simões Nascimento desenvolve um atento percurso sobre as inovações de dificuldades em torno da efetividade da lei de proteção às mulheres. Dois pontos levantados na tese fazem sentido na presente análise.
O primeiro se refere ao modelo de consórcio de organizações que vocalizaram o sentimento de repúdio e intolerância contra todas as formas de violência contra mulher ocorridas no Brasil. O segundo foi a redação do texto a favor da penalização desse tipo de violência sem possibilidade de transação e com imputação de consequências com o fim de evitar a revitimização da mulher.
Para que a legislação seja funcional e não simbólica, o acesso à proteção necessita ser célere e uma rede de garantia da proteção, assegurada. Esse é um modelo de planejamento dentro do próprio texto legal que define ações para que o Estado implemente suas políticas públicas e permita que autoridades cumpram o seu dever ao mesmo tempo em que cria condições para aplicação da lei em favor da proteção das vítimas.
A outra etapa do planejamento legislativo reside na avaliação do cumprimento da lei após a sua entrada em vigor, ou a chamada avaliação de impacto legislativo posterior.
O web aplicativo acima descrito disponibiliza metadados.
Como o nome indica, são dados gerados pelas informações inseridas pelas usuárias e que criam uma massa de informações , além do nome das vítimas e agressores, o juízo responsável e a própria medida protetiva: informam onde ocorreu a violência, qual foi o tipo de violência, identificação do quantitativo por varas judiciais etc.
No TJ-RJ há um serviço de extração de informações estatísticas em operação, denominado Seinf/Dicol e as disponibiliza para que todos os gestores, reguladores, legisladores. O impacto da iniciativa não é pequeno pois alcançou todas as comarcas do estado. O uso dos dados e evidências permitem um monitoramento mais robusto e reavaliações responsáveis do curso de ações governamentais e claro, de legislações, em sentido amplo.
Apesar do poder-dever para avaliar ações governamentais e da criação de direitos, obrigações e competências, os serviços estatísticos ainda não estão dentre os prioritários dentro dos parlamentos brasileiros. A vigência do artigo 37 § 16 da Constituição da República, que institui um sistema de avaliação de efeitos da lei (EC 109/2021) tem interpretação conforme e em consonância com a sociedade da informação, na qual estamos insertos, e considerando a pré existência de normas constitucionais e legais (Código do Usuário do Serviço Público, por exemplo) sobre o tema da avaliação se consideramos a . expressão “na forma da lei” referente à competência de cada órgão em regular a forma de divulgação do objeto e resultados dessas avaliações.
A jurisprudência integra o sistema de fontes do direito e produz muitos dados sobre a saúde das legislações, suas potências, limites, impossibilidades. A avaliação de impacto legislativo que considere o fator da litigiosidade agregará o dado de realidade sobre a vida das normas e cria condições para que legislações possam ter justificativas razoáveis para serem alteradas.
Ferramentas tecnológicas que criem ambientes para efetivarem leis, não só tiram os direitos das páginas e os trazem para a vida das pessoas, mas permitem que aqueles com a competência para realizá-los possam fazê-lo de forma célere, eficiente e republicana. Trata-se de um vigoroso modelo de tecnologia aplicada à maximização de direitos e garantias fundamentais ao atuar na dimensão da efetividade da lei.
Fonte: Conjur