A utilização do legal design como ferramenta de compliance
Data: 02/01/2024
Autoria: Bruna Noronha Enis
A maioria dos serviços jurídicos é concebida para ser executada por usuários específicos que dominem os conceitos técnicos da área. Ocorre que tal prática produz produtos jurídicos incompreensíveis e inutilizáveis. Os profissionais do Direito, muitas vezes, não são treinados para identificar o contexto, o usuário e as possíveis soluções. O ambiente jurídico em geral não é colaborativo nem diversificado. Incorporar o design ao Direito é fundamental para tornar os serviços jurídicos mais acessíveis.
Donald A. Norman, conhecido como o pai do design centrado no usuário, enfatiza que compreender as necessidades, desejos e limitações dos usuários é fundamental para o design de produtos e sistemas eficazes. Ele argumenta que o design deve estar centrado no usuário e não apenas no produto ou tecnologia em si [1].
Uma das principais críticas à área jurídica é justamente essa: os serviços jurídicos não são elaborados com foco na experiência do usuário. Quem nunca teve dificuldade ao ler um contrato? Ou quem nunca deixou de ler algum documento jurídico por ser extenso ou por não entender todos os termos?
Para que uma instituição esteja em conformidade, é essencial que os empregados, colaboradores e stakeholders tenham conhecimento das normas à ela aplicáveis. Nesse aspecto, a utilização do legal design na elaboração de documentos e serviços que envolvam a conformidade da instituição desempenha um papel crucial ao tornar as informações e diretrizes legais mais acessíveis, compreensíveis e visualmente atrativas. Essa abordagem facilita a assimilação das políticas e procedimentos, promovendo uma maior adesão e compreensão das normas, contribuindo para uma cultura organizacional de conformidade mais eficaz e alinhada com os princípios éticos e legais.
Dentre os aspectos que ressaltam a importância do legal design para o compliance, destacam-se: a melhoria da acessibilidade e compreensão de políticas, regulamentos e diretrizes de conformidade; o aumento do engajamento e da adesão dos colaboradores às políticas de conformidade, criando uma cultura organizacional em que todos compreendem e respeitam as normas; a promoção da transparência e confiança ao comunicar claramente as expectativas e responsabilidades de conformidade e a redução de riscos e erros ao tornar as políticas mais claras e acessíveis.
A adoção de um programa de compliance efetivo pode trazer diversos benefícios tanto para as organizações quanto para suas partes interessadas. Esses benefícios vão além do simples cumprimento das leis e regulamentações, contribuindo para a construção de uma cultura ética e responsável, tais como a redução de riscos legais e penalidades; preservação da reputação da instituição; fomento a uma cultura ética; melhoria da eficiência operacional e crescimento sustentável.
O setor de compliance desempenha um papel crucial na criação e implementação de normativos internos em uma organização. Esses normativos são diretrizes e regras estabelecidas pela empresa para garantir que suas operações estejam em conformidade com as leis, regulamentações e padrões éticos aplicáveis. Eles fornecem um conjunto claro de regras e princípios que orientam o comportamento e as práticas de todos os colaboradores dentro da organização.
Segundo a Associação Brasileira de Bancos Internacionais (ABBI) [2], compliance é o dever de cumprir, estar em conformidade e fazer cumprir regulamentos internos e externos impostos às atividades da instituição.
É essencial que esses normativos sejam acessíveis a todos os usuários, pois isso garante que todos compreendam suas responsabilidades, obrigações e os padrões que a organização espera que sejam seguidos, contribuindo para uma cultura de conformidade e ética.
Ao transformar documentos complexos em formatos visuais envolventes e de fácil leitura, o legal design facilita a assimilação das políticas, regras e diretrizes estabelecidas pelo setor de compliance. Isso resulta em maior adesão às normas internas, redução de erros interpretativos, reforço da cultura de conformidade e, em última instância, contribui para um ambiente corporativo mais ético e alinhado com as exigências legais e éticas.
Para que seja um documento eficiente, é necessário que todas as pessoas da organização tenham conhecimento e entendam as regras que ali estão dispostas. Considerando a diversidade das pessoas que, em geral, integram as organizações, o legal design pode ser uma ferramenta importante na elaboração de tais documentos, tornando-os mais efetivos.
O papel do design é a criação de projetos para a solução de um problema ou melhoria de uma situação, sendo sua principal dimensão estratégica e não estética. A utilização do design em outras áreas é chamada de design thinking.
Trata-se de uma forma de abordagem na resolução de problemas para a propositura de soluções mais eficazes e centradas no usuário. Ou seja, leva-se em consideração as necessidades e dificuldades dos usuários daquele serviço/produto que está sendo desenvolvido.
A aplicação de tal abordagem se dá em três etapas: imersão, ideação e prototipação. Na imersão, deve-se pensar no usuário: quais são as suas dificuldades? Quais problemas dos usuários precisam ser resolvidos? A partir de tais perguntas, é feito um diagnóstico. Na segunda etapa, ideação, são propostas resoluções para os problemas encontrados na fase um. Por fim, a prototipação é o momento no qual o usuário irá testar as soluções propostas.
Na elaboração de documentos internos da área de compliance, a utilização da abordagem do design thinking deve começar pela identificação dos usuários. É fundamental definir claramente quem são os usuários e compreender suas necessidades. Além de cargos e níveis de escolaridade, é relevante considerar fatores demográficos, como idade e experiência prévia com documentos de conformidade.
Deve-se também conduzir pesquisas de acessibilidade, levando em conta as necessidades dos usuários com deficiências visuais ou outras limitações.
O segundo passo é a identificação das dificuldades dos usuários. Após compreender o perfil das pessoas que serão destinatárias dos documentos, é essencial analisar as dificuldades que encontram ao interagir com o conteúdo.
Questões como dificuldade de compreensão, linguagem utilizada, compreensão de termos técnicos, extensão dos textos, percepção da aplicabilidade das regras no dia a dia, localização e acessibilidade dos documentos, bem como disponibilidade de tempo para leitura, devem ser investigadas.
Esta fase é crucial para o sucesso do projeto. Recomenda-se que a pesquisa com os usuários seja realizada em duas etapas: a primeira consiste em uma pesquisa escrita, utilizando formulários de resposta com perguntas abertas e fechadas; a segunda em entrevistas com grupos focais.
Na segunda etapa, sugere-se realizar pesquisas com grupos focais compostos por até dez pessoas. Esta abordagem é valiosa, uma vez que o contato direto com os usuários pode revelar questões que não tenham sido abordadas na pesquisa escrita. Nesse momento, é essencial capturar as impressões dos usuários sobre o documento, considerando que algumas experiências só podem ser compreendidas por quem as vivenciou. Esta etapa enfatiza a importância de ouvir atentamente os usuários, desenvolvendo empatia e se colocando no lugar deles.
Após a coleta de dados com os usuários, avança-se para a etapa de ideação. É crucial analisar os resultados coletados e criar perfis de usuários. Com base nesse entendimento, os documentos de compliance devem ser revisados, buscando adequar a linguagem e o formato às necessidades dos usuários.
No processo de revisão dos documentos, o ponto de partida deve ser questionar a finalidade do documento. No contexto dos documentos de compliance, a finalidade é promover uma cultura ética e responsável, garantindo a conformidade com as diretrizes, regras e padrões éticos estabelecidos pela instituição.
Portanto, é recomendável que o código de conduta e outros documentos relacionados às regras de conformidade sejam redigidos de forma simples, direta e acessível. Além disso, é aconselhável incorporar recursos visuais para atrair a atenção dos usuários, destacando as normas mais importantes e oferecendo exemplos práticos de aplicabilidade no cotidiano das pessoas.
Por fim, a última etapa é a prototipação, na qual as soluções propostas devem ser testadas. Idealmente, esses testes devem ser conduzidos com os mesmos grupos que participaram das pesquisas focais.
Essa abordagem inovadora representa um passo importante, especialmente no contexto jurídico, no qual os usuários frequentemente não têm voz. No entanto, essa abordagem tem o potencial de tornar os documentos de compliance consideravelmente mais eficazes, contribuindo significativamente para a conformidade da instituição com as normas e regulamentos aplicáveis.
No livro Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar, Daniel Kahneman [3] salienta que, quando se deseja convencer alguém e obter uma resposta ágil, é imperativo oferecer conforto cognitivo. O mesmo princípio se aplica à eficácia de um programa de compliance em uma instituição: a compreensão e adesão às normas por parte dos colaboradores e demais envolvidos desempenham um papel vital.
Nesse contexto, a aplicação das técnicas de legal design se estabelece como uma ferramenta indispensável para aprimorar significativamente a efetividade dos programas de compliance. A incorporação do legal design nos documentos do programa não apenas os torna envolventes e de leitura acessível, mas também resulta em uma adesão mais ampla de todos os envolvidos.
Essa abordagem não se limita a melhorar a compreensão, mas também implica uma adesão mais sólida às normas internas, redução de erros interpretativos, fortalecimento da cultura de conformidade e, em última análise, contribui para a criação de um ambiente corporativo mais ético e em estrita conformidade com as exigências legais e éticas.
Nesse sentido, torna-se evidente que o legal design é uma ferramenta indispensável na elaboração e revisão dos documentos de compliance, capacitando as instituições a alcançar um nível mais elevado de transparência, acessibilidade e eficiência em suas práticas de governança e conformidade.
[1] Norman, Donald A. O design do dia-a-dia. Tradução Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
[2] ABBI – Associação Brasileira de Bancos Internacionais. Função de Compliance. Disponível em: <http://www.abbi.com.br/download/funcaodecompliance_09.pdf>.p. 8. Acesso em: 10 de outubro de 2023.
[3] Kahneman, Daniel. Rápido e devagar duas formas de pensar. Objetiva – São Paulo. 2012
Fonte: Conjur